Apontamentos
sobre o texto de Jürgen Habermas, "Tendências da
Juridicização" (1981)
por
António A. Santos Carvalho
Texto
elaborado a partir de uma exposição feita no âmbito da disciplina
Direito e Sociedade
A.
Tendências
da juridicização é capítulo de Teoria
da Acção Comunicativa (1984): Habermas intenta testar empiricamente
o síndrome da reificação –
manifesta-se nas sociedades de capitalismo maduro, devido à circunstância
de os subsistemas regulados por media,
Economia e Estado, intervirem por meio do dinheiro e da burocracia na
reprodução simbólica do mundo da vida.
B.1
Jurgen Habermas (1929), doutor em Filosofia (1961), foi assistente de
Theodor Adorno no Institut für
Sozial Forschung de Frankfurt e mais tarde director do
Max-Planck-Institut de Starnberg (Erforschung der Lebensbedingungen der
Wissenschaftlichtechnichen Welt).
Jubilado,
1994, tem tido intervenções públicas posteriores: com Derrida, Eco,
Adolf Muschg, Savater, Gianni Vattimo e Rorty, escreveu, como todos eles,
um artigo na imprensa diária (Frankfurter Allgemeine) de apelo ao fortalecimento de um núcleo
europeu, capaz de relativizar a hegemonia política norte-americana.
B.2 Como constante do
pensamento de Habermas temos uma crítica social norteada por uma teoria
da sociedade em que a teoria e a prática se inscrevem numa fórmula
racional adestrada a explicações e justificações, modalidade em que a consciência
da explicação é ao mesmo tempo a justificação dessa mesma explicação.
Segundo
Habermas, na sua particular concepção de interesses, os interesses
emancipatórios estão ligados à auto-reflexão que permite
estabelecer modos de comunicação entre humanos, tornando razoáveis as
suas interpretações. Ora, uma auto-reflexão da espécie humana sob a
forma de história natural está destinada a evitar qualquer dicotomia
entre empírico e transcendental; supera de igual maneira os escolhos de
uma orientação supostamente concreta e de uma orientação abstracta,
investida a noção de amadurecimento
(Mündigkeit). Permite unir, aqui, razão e decisão, compreender as
bases materiais da racionalidade, nem consequência nem super estrutura.
Por conseguinte, a ciência força produtiva, só com a ciência força
emancipadora.
Construiu,
então, os conceitos de razão comunicativa e de mundo da vida, em
contraponto objectivo, avançando para uma fundamentação normativa da
sua teoria social crítica.
C.1 Na Teoria
do Agir Comunicativo desenvolveu Habermas esta teoria da racionalidade
comunicativa no contexto de uma teoria da razão, da evolução, da
modernidade que desemboca na concepção particular que tem das sociedades
do capitalismo maduro:
·
Só a linguagem podemos explicar, auto-referencial e
auto-suficiente que é;
·
Permite-nos perceber a estrutura das nossas representações e
pensamentos, descobrir certas estruturas de racionalidade nela
manifestadas: confirma a existência de uma razão
comunicativa, que permite estabelecer o entendimento entre as pessoas;
·
Neste âmbito é instituído um conjunto de sentidos
gramaticalmente pré-determinado, fundo comum a partir do qual os indivíduos
socializados tomam recursos necessários para compreender, interpretar e
agir sobre o mundo da vida;
·
Logo emerge a necessidade de se constituir um modo de actividade
social que tenha como único critério a busca do melhor argumento:
processo de argumentação que julgue as pretensões de validade do ponto
de vista da sua racionalidade, e permita alcançar um acordo
intersubjectivo – a acção
comunicativa;
·
E o interesse emancipatório que guia a acção comunicativa faz
com que seja possível pensar a emancipação objectiva (guiada pela crítica
racional) das formas de dominação existentes num dado estádio de
desenvolvimento da sociedade, tanto ao nível do conhecimento, quanto da
linguagem e da acção.
·
Mas a emancipação objectiva de todas as formas de dominação,
num dado contexto histórico, só é possível postulada
uma capacidade de aprendizagem por parte dos indivíduos, ampliada às
sociedades como um todo através da
prática comunicativa;
·
Em analogia com os processos de aprendizagem individuais, obedece a
fases de evolução determinadas, em função dos estágios de
desenvolvimento da moralidade e da lei: corresponde à lógica do
desenvolvimento das estruturas do mundo-da-vida, determinada, por sua vez,
pela lógica da racionalização comunicativa;
·
Esta acaba por provocar uma cisão entre sistema e mundo-da-vida.
Por
fim, desenvolve uma teoria das sociedades do capitalismo maduro –
baseadas justamente na cisão mundo-da-vida e sistema, na autonomia dos
processos de reprodução material e cultural, e apontando para uma
transformação destas formações sociais ao nível exclusivo da cultura,
ou seja, do mundo-da-vida.
C.2 Em tendências
da juridicização, Habermas parte das seguintes pré-condições: (i)
efectiva diferenciação das componentes estruturais do mundo
da vida, cultura, sociedade e personalidade; (ii)
regulação do intercâmbio entre este e os subsistemas através de papeis
diferenciados; (iii)
possibilitarem as abstracções
reais a disposição da força de trabalho ou a mobilização dos
votos dos eleitores contra certas compensações conformes ao sistema; (iv)
financiamento deste esquema pelos excedentes capitalistas, alocados às
expectativas de realização e disposição de si próprio, subtraídas ao
mundo do trabalho e ao espaço público, e integradas nos papeis de consumidor e clientes.
E
trata-se aqui, tal como género de empíria adequada à prova, da
judicialização dos campos de acção dotados de uma estrutura
comunicativa: nas formas do Direito moderno constituem-se relações
sociais formalmente organizadas, onde é de esperar que a passagem da
integração social à integração sistémica se caracterize em processos
cujos efeitos de reificação deveriam restar como consequência sintomática
de um certo género dessa mesma judicialização.
C.3.4 Judicialização: termo
introduzido no debate científico da República de Weimar por Otto
Kircheimer, e referido à canalização dos diferendos sociais e das lutas
políticas para formas jurídicas, transfer
para o Estado social que se exprimiu nos direitos de participação
consagrados na Constituição Alemã, estudados na doutrina entre outros
por Carl Schmit, que é citado.
Eis
o último elo de uma corrente de
surtos sucessivos de juridicização (verrechtlichungsschübe): (i)
Estado burguês (Absolutismo); (ii)
Estado de direito (monarquia
alemã); (iii) Estado
de direito democrático (Revolução Francesa); (iv) Estado de direito social e
democrático (conquistado pelo movimento operário no decorrer do século
XX).
Direito
do Estado burguês:
institucionalização dos media
através dos quais puderam ser diferenciados os subsistemas Economia e
Sociedade. Garantiu a liberdade, propriedade, segurança jurídica e a
igualdade dos sujeitos de direito perante a lei. Logo, a contabilidade
das acções juridicamente regulamentadas.
O
mundo da vida abrange aqui tudo
o que se encontra excluído do sistema e entregue ao arbítrio privado,
constitui uma reserva sem definição mais expressiva da qual Economia e
Estado extraem tudo aquilo que precisam para a sua reprodução: prestações
de trabalho e disponibilidade de obediência.
Mas
os media, poder e dinheiro,
precisavam de um mundo da vida
moderno que só por essa via conseguiria o Estado burguês uma
legitimidade não parasitária, à
altura dos níveis modernos de justificação.
Estado
de direito: regulamentação pelo Direito Constitucional de uma autoridade
até então limitada apenas pela forma legal e pelos meios burocráticos
do exercício da dominação. Estabeleceu a autoridade da lei: as garantias da vida, liberdade e propriedade dos
particulares já não se apresentam como efeitos funcionais da
institucionalização do comércio pelo Direito privado. Através da ideia
de Estado de direito são normas constitucionais moralmente justificadas e
marcam no seu conjunto a estrutura da ordem de dominação
(Herrschaftsortnung). É a ordem jurídica enriquecida dos elementos
necessários para proteger o mundo
da vida moderno.
Estado
de direito democrático: a ideia de liberdade investida na lei passa para
o plano do Direito Constitucional, onde se democratiza o poder do Estado
constitucionalizado. Alcança a
juridicização do processo de legitimação na forma do direito de voto
igual e generalizado e na liberdade de associação. E coloca-se a
questão da separação dos três poderes: mais
uma vez, o mundo da vida moderno se manifesta contra os imperativos de uma
estrutura de autoridade que faz abstracção de quaisquer condições
concretas de vida, o médium
do poder amarrou num mundo da vida
racionalizado, que já se diferenciou além das fronteiras da burguesia.
Manifesta-se
a vocação da regulamentação jurídica para garantir as liberdades, aí
onde o Direito burguês formal opõe claramente as reivindicações do mundo
da vida à autoridade burocrática: perde o carácter ambivalente de
liberdade conseguida ao preço de efeitos secundários negativos.
Estado
social: constitui um prolongamento de uma juridicização garantística,
domestica o sistema de acção económica tal como os dois surtos de
juridicização precedentes domesticaram o sistema de acção
administrativa. Mas as conquistas alcançadas foram fruto da luta política
pelas liberdades. E conclui Habermas: …foi
reconciliada a dinâmica própria do processo económico de acumulação
com a lógica própria das estruturas de um mundo da vida que, também
ele, se racionalizou.
Uma
juridicização, pois, que visa equilibrar uma relação de forças no âmbito
de um campo de acção à partida
constituído juridicamente. Contudo, na medida em que o Estado-providência
intervém na questão social
mais além da pacificação, atravessa a esfera da produção e se estende
numa rede de relações clientelares através dos campos da vida privada,
aparecem cada vez mais os efeitos laterais patológicos de uma judicialização
que significa simultaneamente uma burocratização e uma metalização de
campos nucleares do mundo da vida.
C.4 Concluiu: segundo o critério
jurídico, o Direito formal burguês tornou-se dilemático a partir do
momento em que foi mobilizado quer para a delimitação negativa do âmbito
do arbítrio privado quer para a garantia positiva da participação na
Administração e nos benefícios das instituições. No entanto, não é
pertinente derivar os aspectos do confisco das liberdades da forma dos
direitos de participação, mas apenas a partir dos meios burocráticos da
sua implementação.
De
outro ponto de vista, em particular para todos os casos em que o Direito
é mobilizado em subsistemas como meio organizador (Direito Económico,
Comercial, Empresarial e Administrativo), perante a massa variável e
permanentemente crescente do Direito positivo, os modernos sujeitos do
Direito, na dúvida, satisfazem-se com uma legitimação pelo
procedimento. Nestes casos, o direito é de tal maneira combinado com os
media, dinheiro e poder, que acaba por assumir ele próprio o papel de um médium
de regulação: o médium direito
permanece todavia ligado ao direito
como instituição.
Porém,
as normas-jurídicas-instituições-de-direito, não se deixam
satisfatoriamente legitimar pelo procedimento (bases do Direito
Constitucional, princípios do Direito e Processo Penal, incriminações
que se relacionam com a moral…), necessitam de uma justificação
material, porque pertencem às organizações legítimas do próprio mundo da vida
e porque constituem, juntamente com as normas informais da acção,
o pano de fundo da acção comunicativa.
D.
A leitura do texto deixou um evidente sulco de confiança emancipatória
numa fronteira de justificação do Direito, sobretudo o Direito dito,
como abertura e não fechamento à razão do mundo social.
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