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      Uma
      reflexão a propósito da leitura de  A
      Legitimação Pelo Procedimento (1969) de Niklas Luhmann
      
       
      por
      Eduardo Manuel Castro Guimarães de Carvalho Campos
      
      , Março, 2005 
      Texto elaborado a partir de uma exposição feita no âmbito da
      disciplina  
      Direito e Sociedade
      
       
      Este
      texto apresenta uma reflexão extraída da observação meramente empírica
      da realidade nacional actual, à luz da “arquitectura” que Niklas
      Luhmann concebeu na obra “Legitimação pelo Procedimento” para a
      realidade alemã dos anos 60 do século XX.
      
       
      Essa
      reflexão pode parecer algo amarga. Porventura, resulta de algum
      desencanto que a distancia da explicação e análise “construtivista”
      de Luhmann (análise que, entendo, enfatiza a democraticidade totalmente
      adquirida pelos cidadãos, escrupulosamente praticada pelo Estado e
      profundamente enraizada na sociedade) e a aproxima da crítica
      “desconstrutivista” que releva mais o alheamento dos cidadãos, a
      impreparação do Estado e a superficialidade social com que o sistema
      verdadeiramente democrático é ainda encarado em Portugal.
      
      
      
       
      A
      primeira plataforma conceptual da qual assentou esta reflexão foi,
      contudo, buscada em Max Weber e em Talcot Parsons, autores que encontrei
      presentes na obra de Luhmann.
      
      
      
       
      Quanto
      ao primeiro autor, foi trazida para o pensamento aqui exprimido a
      racionalidade no que toca aos fins, classificação de Weber para a acção
      em que os meios são escolhidos tendo em conta a sua adequação aos fins
      que visam atingir, num contexto institucional bem diferente e estranho à
      autoridade assente na crença em qualidades excepcionais dos indivíduos.
      Essa racionalidade significa, pois, a sujeição da vida social a regras e
      normas constantes de regulamentações precisas, sendo, aliás, essa sujeição
      a mais importante característica da moderna sociedade ocidental. Na
      verdade, encontra-se na obra de Luhmann reflexos desta racionalidade,
      verdadeiros pressupostos do enunciado de “A Legitimação pelo
      Procedimento” para cada um dos processos aflorados – processo
      judicial, processo eleitoral e legislativo e processo decisório
      administrativo.
      
      
      
       
      Em
      segundo lugar, apelou-se a conceitos basilares em Talcot Parsons e que se
      evidenciaram com elevada nitidez em Luhmann. São eles i) os conceitos de
      sistemas e sub-sistemas sociais interdependentes, em permanente abertura e
      permeabilidade de trocas em termos de complementaridade recíproca, ii) o
      conceito de estrutura consistente em papéis, normas e valores, como
      comportamento repetitivo expressivo de regularidade social 
      independente das flutuações de pequena amplitude e de curta duração
      que se verifiquem na relação do respectivo sistema com a realidade
      circundante, iii) o conceito de função, como aspecto dinâmico que põe
      em comunicação as diversas estruturas pertencentes aos respectivos
      sistemas e iiii) o conceito de instituições como complexos integrantes e
      conformadores de posições sociais e papéis ocupadas e desempenhados
      pelos sujeitos.
      
      
      
       
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      Em
      “A Legitimidade pelo Procedimento”, o sistema é um conceito central
      concebido a partir da diferenciação que um conjunto de elementos
      apresenta perante outros elementos que lhe são estranhos e distintos e
      que, face à complexidade que o mundo circundante representa para esse
      sistema, este surge como selectivamente redutor dessa complexidade, na
      medida em que diminui o volume de possibilidades de posição a ocupar, de
      opção a tomar e de actuação a desempenhar.
      
       
      O
      Direito é, nesta obra, uma das estruturas que, na contingência social,
      garante as expectativas. Direito é, para Luhmann, uma estrutura que
      define os limites e as interacções da sociedade, estabilizando as
      expectativas e reduzindo as contingências individuais, fazendo com que
      cada indivíduo possa prever, com um mínimo de garantia, o comportamento
      dos demais.
      
       
      A
      legitimidade da estrutura jurídica consiste na capacidade de produzir uma
      prontidão generalizada para a aceitação das suas decisões, ainda que
      estas sejam indeterminadas quanto ao seu conteúdo concreto, dentro de
      certas margens de tolerância. Para Luhmann, a legitimidade advém do próprio
      procedimento de tomada de decisão.
      
       
      Procedimento,
      para Luhmann, é um sistema de acção através do qual os destinatários
      da decisão aprendem a aceitar a decisão que vai acontecer, antes mesmo
      de esta acontecer e sem saber o seu conteúdo concreto. Para isso, o
      procedimento reveste algumas características: a) interesse próprio dos
      participantes no procedimento no assunto em causa; b) margem de escolha
      por parte do participante (não é uma sequência pré-fixada e
      ritualizada de acções); c) vinculação dos participantes às suas actuações;
      d) orientação dos participantes pelas actuações dos outros
      co-participantes; e) separação dos papéis dos participantes dentro do
      procedimento e fora dele, no mundo geral circundante; f) certeza de que no
      final do procedimento resulta a tomada de decisão; g) a incerteza sobre o
      conteúdo desta decisão.
      
       
      É
      o procedimento com estas características que oferece a legitimidade das
      decisões obrigatórias que, apesar de serem tomadas por apenas alguns
      indivíduos, vincula os seus destinatários e obriga a generalidade da
      sociedade à sua observância e respeito, obrigatoriedade que é acatada
      pela sua aceitação geral.
      
       
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      Na
      obra, Luhmann analisa os processos judicial, de eleição política e
      produção legislativa e de decisão administrativa, fazendo ressaltar e
      descrevendo o procedimento como fonte da legitimidade das decisões
      tomadas em cada um desses processos. Nessa análise, a autonomia dos
      procedimentos é um requisito que se pressupõe e não se questiona –
      autonomia que significa que é o procedimento que orienta, instrui e
      direcciona os sentidos e conteúdos dos intercâmbios entre as estruturas
      e métodos próprios de cada sistema com os outros sistemas com os quais
      mantém contacto. Essa autonomia implica, ainda, algumas consequências: são
      elas 1) o respeito pela temporalidade própria do procedimento,
      independentemente das necessidades temporais de outros sistemas, 2) a
      filtragem, selecção e o aproveitamento pelo procedimento de informações
      produzidas noutros sistemas exteriores e diferentes e 3) a distinção
      clara e inequívoca de posições, estatutos e papéis que os
      participantes ocupam, detêm e desempenham quando se encontram no
      procedimento daquelas outras posições, estatutos e papéis que os mesmos
      indivíduos ocupam, detêm e desempenham noutros ambientes e noutros
      sistemas.
      
      
      
       
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      A
      reflexão que aqui se traz parte, precisamente, de um pressuposto contrário.
      O ponto de partida é a interferência da “informação” veiculada
      pelos media nos procedimentos legitimadores das decisões tomadas nos
      processos judiciais, de eleição e legislativos e de decisão
      administrativa.
      
       
      Quanto
      a este aspecto, Luhmann refere-se aos media no capítulo dos processos
      judiciais, para alertar para o risco de perturbação que os órgãos de
      comunicação social podem provocar decorrente da instalação é
      manuseamento da logística e dos equipamentos dos repórteres nas salas
      dos tribunais (afectando a tranquilidade, a solenidade e a concentração
      que certos actos procedimentais requerem), decorrente da antecipação do
      conteúdo da decisão que vai ser tomada (afectando o tempo próprio do
      procedimento para anunciar o teor da decisão) e decorrente do eco
      continuado que se dá às reacções e críticas à decisão tomada
      (afectando o acatamento e a aceitação geral do conteúdo da decisão).
      Ou seja, a edificação de “A Legitimação pelo Procedimento” pressupõe,
      em primeiro lugar e desde logo, que A) a informação produzida e
      divulgada pelos órgãos de comunicação social é verdadeira; que B) a
      informação produzida e divulgada pelos órgãos de comunicação social
      é, ela própria, uma informação seleccionada, no sentido que apenas
      versa sobre aspectos objectivamente relevantes para o assunto com importância
      jornalística; que C) os participantes no procedimento distinguem com
      absoluta clareza os papéis e os estatutos sociais que desempenham e detêm
      no procedimento daqueles outros que desempenham e detêm fora do
      procedimento e surgem retratados na comunicação social; que D) os
      procedimentos filtram a informação produzida e divulgada nos media,
      aproveitando os dados pertinentes ao objecto do processo e ignorando as
      informações subjectivas sem importância substantiva para a boa decisão.
      
      
      
       
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      Acontece,
      porém que a realidade é bem diferente.
      
       
      Os
      órgãos de comunicação social são, maior parte das vezes, propriedade
      de grupos empresariais que constrangem, tantas vezes, o trabalho
      substantivo dos feitores das “informações” noticiosas e opinativas,
      cada vez mais condicionados por objectivos remotos e cada vez mais
      submetidos a orientações alheias aos conteúdos. Os grupos proprietários
      dos órgãos de comunicação social têm interesses económico-financeiros
      concretos, têm identidades, afinidades ou preferências políticas
      definidas, têm relações privilegiadas e estreitas com determinados
      grupos sociais. Tal resulta, inegavelmente, na inverdade da “informação”
      divulgada e transmitida para a sociedade em geral. Mas significa mais do
      que isso. Significa que não existe possibilidade de escrutinar a
      veracidade da informação veiculada pelos órgãos de comunicação
      social e que essa informação, frequentemente, é quem determina a actuação
      dos participantes nas estruturas. Mercê uma sociedade de informação
      simplificada e massificada, altamente mediatizada, em que os decisores são
      constantemente sindicados pela “opinião pública”, não há filtragem
      da “informação” divulgada nem protecção dos procedimentos face a
      informações gerais e especiais que acabam por interferir nos processos
      de tomada de decisão. Mais do que isso, os órgãos de comunicação
      social, impulsionados pelo mercado, tendem a fundir a informação
      objectiva pertinente para determinado assunto com a informação
      subjectiva e particularista, mais acessível e mais apetecível para
      consumo imediato por grandes massas. É esta informação que também
      influi nos processos de decisão, inquinando-os, tantas vezes, com
      preconceitos determinantes do conteúdo da decisão final. Aliás, muitas
      vezes, não há distinção entre as estruturas e os sujeitos
      participantes em vários sistemas cujos procedimentos legitimadores
      pressupõem essa distinção: são agentes políticos a prestarem serviços
      ou a venderem as suas opiniões nos órgãos de comunicação social,
      detidos, como vimos, por grupos empresariais cujos accionistas/sócios
      incluem o próprio Estado ou têm com este relações de permuta de serviços
      e contrapartidas; são os actores políticos e partidários a serem
      avaliados pela sua participação em (supostos) epifenómenos de diversão
      social; são agentes da administração pública com ligações estreitas
      ao mercado e interessados, portanto, no sentido material das decisões; são
      magistrados ligados ao sistema eleitoral e ao sistema de produção
      legislativa, precisamente os sistemas que determinam a orientação e
      actuação da máquina administrativa. 
      
       
      Estas
      circunstâncias enfraquecem, do meu ponto de vista, os procedimentos
      legitimadores do processo judicial, do processo eleitoral e legislativo e
      do processo decisório administrativo, em Portugal, na sua capacidade
      legitimadora das decisões que proferem e impõem ao tecido social,
      comparando com aquela que surge da realidade observada e retratada por
      Luhmann.
      
       
       
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