Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa - ISCTE
Secção Autónoma de Direito
Mestrado "Novas Fronteiras do Direito"
Actualizado em Junho de 2005

Novas Fronteiras do Direito
no "site" do ISCTE

 

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Apontamentos sobre o livro de Michel Foucault, Vigiar e Punir (1975)

por Fernando Vitório Frazão
Texto elaborado a partir de uma exposição feita no âmbito da disciplina 
Direito e Sociedade
Trabalho de: Fernando Vitório Frazão

1.   Introdução

2.   Contexto

3.   Estrutura do Texto

4.   Possíveis Ideias da Obra

5.      Algumas considerações em jeito de interrogação

Bibliografia e artigos consultados

1.   Introdução.                                     [topo da página]

“Vigiar e Punir”, sendo aparentemente uma história de delinquência e de prisões, vai muito além disso, já que a prisão mais não será de que uma das formas disciplinadas da organização do poder, levantando-se assim matéria para reflexão sobre o funcionamento da sociedade, em especial a organização do poder e a sua relação com os indivíduos dessa mesma sociedade, bem como o próprio Direito dessa mesma sociedade ou Estado.

Foucault, desde a publicação do seu primeiro trabalho “Doença mental e personalidade”, em 1954, até ao seu desaparecimento em 1984, escreveu sobre assuntos como a loucura, a doença, o crime, os discursos, a sexualidade. Sociólogo, historiador, filósofo, Foucault fornece dados interpretativos e de reflexão sobre os temas das relações do poder, da formação dos saberes ou ainda das formas de subjectividade do presente.

Alguns autores dividem o seu trabalho em 3 fases (D’Arcy, 2004:116): a fase arqueológica, que compreenderá as obras escritas nos anos 60; a fase genealógica, que compreenderá as obras escritas nos anos 70 e a fase dos trabalhos éticos escritos nos anos 80.

Outros (Ewald:2000), todavia, identificam 4 trabalhos marco na obra de Foucault: História da Loucura (1961); Nascimento da Clínica (1963); Vigiar e Punir (1975) e História da Sexualidade – Vontade de Saber (1976)[1].

Esta não coincidência de análise, permite-nos, antes de mais, constatar que a obra deste autor não é de fácil apreensão nem de fáceis consensos. Independentemente de qualquer divisão - se é que se pode falar em compartimentos na sua obra - “Vigiar e Punir” é apontado como um marco do autor. Terá sido a sua grande obra. Verifica-se uma evolução do pensamento de Foucault, onde o seu método passa de arqueológico[2] a genealógico[3]. Terá sido o próprio Foucault a afirmar “É o meu primeiro livro”(Ewald, 2000: 20).

 

2.   Contexto             [topo da página]

Na sua obra, Foucault refere vários autores, tais como Beccaria, Bentham, Marx, Weber, etc. Todavia, se é verdade que “Vigiar e Punir” está cheio de referências, o estilo utilizado é diferente das formas tradicionais de citação ou referência, já que na escrita de Foucault não há interpretação ou reverência às posições desses autores. Essas referências servirão somente para melhor situar o leitor na matéria ou assunto em causa. Foucault utiliza discursos, documentos ou arquivos, sem qualquer hierarquia entre eles, não dando primazia ao que se tem vindo a convencionar de grandes escritos ou obras.

Foucault escreveu esta obra já como professor do “College de France” e depois de ter estado na Tunísia onde o contacto com as prisões o terá influenciado na evolução do seu pensamento, expresso nesta obra. “Vigiar e Punir”, reflecte a consolidação/mudança do pensamento de Foucault que o levam a fazer a análise social que emerge desta obra e que mais não será que o reflexo de um conjunto de acontecimentos nos anos que antecederam a publicação desta obra tais como os movimentos de libertação das colónias, a influência da guerra-fria e, talvez o mais importante, o reforço das ideias e da importância da esquerda nas sociedades europeias.

3.            Estrutura do Texto               [topo da página]

“Vigiar e Punir”, que tem 4 partes: Suplicio, Punição, Disciplina e Prisão, não adopta um estilo clássico, com introdução, corpo e conclusão, mas, numa análise mais atenta, é possível ver que Foucault nos dá uma obra que tem também essa característica: introduz um tema que vai desenvolvendo ao longo do livro, sendo que e a última parte é como que um rematar do pensamento antes desenvolvido. É certo que de forma diferente e não conclusiva, no sentido do fecho de uma determinada matéria ou da assumpção de uma verdade ou situação final. Atente-se que a parte do Suplicio nada mais faz do que situar o leitor numa fase anterior ao Século XX (XVIII e XIX) para que se possa perceber a evolução do sistema das penas, dos condenados, para depois de fazer esta referência, tentar perceber o que seja o sistema prisional e as técnicas disciplinares para, seguidamente e por último, poder entender o que mais interessa a Foucault: a análise do poder, a sua organização e o modo como os cidadãos se movimentam ou são conduzidos nessa mesma sociedade no sentido de a esta mesma sociedade ou ao poder serem úteis.

4.            Possíveis Ideias da Obra                [topo da página]

A lombada da capa da tradução portuguesa de “Vigiar e Punir” (Foucault, 2004 trad. port.) refere que se trata de “um estudo científico (…) sobre a evolução histórica da legislação penal e respectivos métodos e meios coercitivos e punitivos adoptados pelo poder público na repressão da delinquência….O autor aborda esse grave problema que a sociedade humana e as autoridades públicas sempre tiveram de enfrentar: a criminalidade.(…) Aparentemente alega-se não tanto o castigo dos delinquentes mas a sua recuperação, a fim de integrá-los na sociedade”. Todavia, outros autores, têm entendimento diverso sobre o que pode depreender desta obra, “nomeadamente que esta é um amplo estudo sobre a disciplina na sociedade moderna, (…) Foucault analisou os processos disciplinares empregados nas prisões, considerando-os exemplos da imposição às pessoas e padrões “normais” de conduta estabelecida pelas ciências sociais. A partir desse trabalho, explicitou-se a noção de que as formas de pensamento são também relações de poder, que implicam a coerção e imposição.”(Esboço Biográfico, 2004).

Partindo destes dois comentários introdutórios e lendo a sua obra, vê-se com mediana clarividência que o que preocupa Foucault, é o poder e a sua organização, o sistema prisional, as técnicas disciplinares direccionadas para a normalização dos indivíduos desviantes[4], ou a imposição das penas onde sobressai na sua análise que o individuo é punido pelo que é e não tanto pelo que fez.

Não aborda os problemas de uma maneira clássica ou sobre uma mesma perspectiva. É uma forma desconcertante para o leitor mais desprevenido. Foucault, nesta obra, transmite a ideia de que a genealogia do poder punitivo e prisional nos ensina que a substituição dos castigos físicos e do horror dos suplícios por sanções correctivas passará pelo progresso das ciências sociais. A prisão não servirá tanto para privar da liberdade pelo castigo do crime cometido, mas afinal para dominar, educar, corrigir[5]. Há, assim, para ele, uma perniciosa utilização da prisão. Este poder em conjugação com o saber usa de formas insidiosas mas eficazes no seu objectivo. E daqui decorrerá a concepção de que o sistema penal tem por finalidade vigiar e punir.

Para Foucault esse poder não se esgotará na prisão, no uso que nela se fará de uma vigilância constante, através no “Panoptismo de Bentham”, mas também nas fábricas, nas escolas, nos quartéis ou nos hospitais, que para Foucault é a sociedade de vigilância[6] ou sociedade disciplinar, a qual, repete-se, serve para tornar úteis os membros da sociedade. No seu modo de ver a sociedade, o poder não é meramente repressor, mas também produtor, no sentido em que modela os espíritos e os corpos, ou seja, o poder disciplinar que é exercício em toda a sociedade.

Tentando percepcionar algo sobre o seu pensamento relativo ao Direito, merece referência que para Michel Foucault as “disciplinas” não constituem nada mais do que um infradireito (Foucaul, 2004 trad. port: 183); para ele os sistemas jurídicos qualificam os sujeitos de direito, segundo normas universais, enquanto as disciplinas caracterizam, classificam, especializam, hierarquizam os indivíduos em relação uns aos outros. Para Foucault dois principais poderes existem nas sociedades modernas: por um lado o poder disciplinar, poder dominante e centrado nas ciências e, por outro, o poder jurídico, centrado no Estado, mas com a lei num processo de declínio (Santos, 2002)[7].

5.            Algumas considerações em jeito de interrogação.

Foucault, crítico da organização das nossas sociedades? Anarquista? Desconstrutivista? Seja qual for a catalogação que se queira dar, o que releva é que a sua obra tendo uma boa dose de cepticismo é, todavia, percursora no modo como nos direcciona para problemas ou questões que assumem relevância na sociedade. Sendo uma obra crítica da sociedade moderna, apela a algumas transformações sociais, nomeadamente à fuga à normalidade, ao demonstrar como as nossas sociedades punem o que foge a essa mesma norma.

Numa perspectiva jurídica, esta obra levanta interrogações sobre como encarar o Direito e a própria lei, nomeadamente que opções legislativas são tomadas, como é aplicada a lei, contribuindo para um olhar mais atento, quiçá diferente, sobre o nosso sistema jurídico. Por outro lado, aparentando Foucault ser um pensador não muito crente no Direito, especialmente no Direito Natural e não fornecendo hipóteses concretas de solução ou do caminho a seguir, ao ler-se esta obra sente-se alguma melancolia misturada com um forte sentimento de inquietação e talvez, mesmo, alguma contradição, podendo perguntar-se: que devemos tipificar como crime? Como se deve punir? Afinal, qual a finalidade das prisões? Qual a melhor forma organizada de viver em sociedade? Existindo dois poderes como identifica Foucault, qual a adequada relação que deve existir entre poder jurídico e poder disciplinar? Será que a nossa sociedade está a caminhar (no sentido da mudança) para cada vez assumirem mais importância os poderes disciplinares e menos o poder jurídico? Será possível conceber um Poder que contribua para uma efectiva defesa dos interesses dos indivíduos?

Mas porque se fala em poder, independentemente de que tipos de poder se podem conceber, com a respectiva carga negativa que o mesmo encerra, será que o entendimento de que “o poder tem que ser sempre destabilizado, ser sempre criticado (e) mesmo quando a gente concorda ou apoiou quem está no poder, temos de ter sempre uma atitude crítica” (Veríssimo, 2005), não terá sido também a preocupação ou o sentido da obra de Foucault?

Ou, afinal, tudo se resume, e não é pouco, ao que terá dito Foucault “…todo o empreendimento de Vigiar e Punir é uma tentativa de responder a esta pergunta (a mudança) e mostrar como um novo modo de pensar se instaurou” e que “Vigiar e Punir tem por objecto as instituições e os princípios sociais”.(Verité, Pouvoir e Soi: 1982)´?

Mas porque o título desta obra e o seu próprio texto se referem e se situam ao redor do entendimento da prisão e da sua finalidade, como ilustração de quanto este livro poderá significar como ponto de partida ou de interrogação sobre o funcionamento e organização da sociedade actual, do Direito, dos Estados, da relação entre estes e os indivíduos, afigura-se a propósito a transcrição de um parágrafo do prefácio da autoria de Nietzsche à obra “Genealogia da Moral”: “Este problema do nascimento da prisão não parece ser, à primeira vista, senão uma questão isolada, um ponto de interrogação singular e excepcional; mas a quem aqui se detiver uma única vez, a quem souber interrogar deparar-se-lhe-á o que a mim se deparou: à sua frente verá abrir-se uma perspectiva nova, imensa, a visão de uma possibilidade apoderar-se-á dele como uma vertigem, hão-de surgir-lhe toda a espécie de desconfianças, de suspeitas, a sua fé na moral, em toda a moral ….”(Ewald, 2000: 19)

Lisboa, 21 de Fevereiro de 2005

Bibliografia e artigos consultados              [topo da página]

-        Broadhead, Lee-Anne/Howard, Sean, “The Art of Punishing” The Research Assessment Exercice and the Ritualisation of Power in Higer Education, Education Policy Analysis Archives, vol. 6, n.º 8, April 98, in http://epaa.asu.edu/epaa/v6n8.html (19-10-2004)

-        D’Arcy, Stephen, “Revieu Paul Rabinow and Nikolas Rose (eds.), the Essential Foucault:Selection from Essential Works of Foucault, 1954-1984 (New York Press, 2003”, Huron University College; Foucault Studies, n.º 1, pág 116, Dezembro de 2004, in http://www.qut.edu.au/edu/cpol/foucst/toolbox.html  (14.12.2004);

-        Esboço Biográfico, Espaço Michel Foucault, in http://www.unb.br/fe/tef/filoesco/foucault/bio1.html (19-10-2004);

-        Ewald, François, Foucault, A Norma e o Direito, Comunicação & Linguagens, 2ª Edição, 2000, tradução de António Fernando Cascais;

-        Foucault, Michel, - Vigiar e Punir, tradução para Português de Raquel Ramalhete, 26ª Edição, Editora Vozes, Petrópolis, 2004;

-        Garapon, Antoine/ Gros, Frédéric/ Pech, Thierry, Punir em Democracia, Instituto Piaget, 2002;

-        Pakosz, Reginald / Chagani, Fayaz – The Carceral Society- http://www.geocities.com/Athens/Agora/9095/carceral.html  (14-12-2004);

-        Santos, Boaventura de Sousa, Toward a Non Legal Common Sense, Second Edition, Butterworths , Lexis Nexis, 2002;

-        Veríssimo, Luís Fernando, Entrevista, Diário de Notícias, Lisboa, 24-02-2005;

-        Verité, pouvoir et soi. (entretien avec R. Martain, Université du Vermont, 25 de octobre 1982). Traduzido a partir de Foulcault, Michel. Dits et écrits. Paris: Gallimard, 1994, vol. IV, pp.777-783, por Wanderson Flor do Nascimento - http://www.unb.br/fe/tef/filoesco/foucault/verite.html  (13-12-2004).



[1] A este respeito, Pierre Guibentif, nas suas aulas da cadeira “Direito e Sociedade” no Curso de Mestrado “As Novas Fronteiras do Direito”, Secção Autónoma de Direito, ISCTE, 2004/2005, entende as seguintes fases do trabalho de Foucault:

- 1ª fase: História da Loucura (1961), em que nesta obra há uma certa ideia de razão, que à priori é algo construída pela história, pela época e, por isso, para Foucault, será preciso saber melhor sobe a construção histórica;

- 2ª fase: As Palavras e as Coisas (1966), em que há uma apologia dos discursos, da análise da ordem e da desordem, em que se denota que há a convicção que pelo discurso humano se poderá mandar no mundo. Subjacente a esta obra, estará a ideia segundo a qual o que condiciona o nosso pensamento não são apenas aqueles grandes factores técnicos e sociais (tecnologia, imprensa, estratégias, etc.), mas mais importante será perceber como é que em cada época o discurso se condiciona a si próprio. Segundo Guibentif é com esta obra que Foucault passa a ter lugar entre os grandes pensadores franceses;

- 3ª fase: nos anos 70, Foucault passa a intervir em várias lutas sociais, como as em favor de condições de detenção aceitáveis ou nas reivindicações homossexuais. Nesta fase constata a aparição de um poder robusto que se mantém pela simples aceitação por parte do povo. Aceitação esta que só se verifica pela força, pela manipulação. Discute-se o tema do “controle social”, cujo momento culminante é a publicação em 1975 do livro “Vigiar e Punir” em que parece que o objectivo do Foucault é provocar transformação na percepção pública do poder;

- 4ª fase: História da Sexualidade – Vontade de Saber (1976), embora numa outra área da sociedade, Foucault continua a procurar saber como se exerce o controle social na nossa sociedade. Fala-se no biopoder no qual os Estados não apenas reprimem, mas cuidam das condições físicas dos seus cidadãos, para produzir uma população mais útil para o desenvolvimento económico.

[2] Arqueólogo dedicado à reconstituição do que mais profundo existe numa cultura – arqueólogo do silêncio imposto ao louco, da visão médica (Nascimento da Clínica, 1963), das ciências humanas, (As palavras e as coisas, 1966), do saber em geral (A Arqueologia do Saber, 1969).

[3] “As genealogias são muito exactamente anticiências - …insurreição dos saberes contra os efeitos do poder centralizador  que estão ligados à instrução e ao funcionamento de um discurso organizado no interior de uma sociedade como a nossa”, - definição do próprio Foucault, (Ewald, 2000: 16).

[4] “De uma maneira global, pode-se dizer que as disciplinas são técnicas para assegurar a ordenação da multiplicidade humana”, (Foucault, 2004 trad. port: 179)

[5] “ A prisão (…) é o local onde o poder de punir (…) organiza silenciosamente um campo de objectividade em que o castigo poderá funcionar em plena luz como terapêutica e a sentença inscrever-se entre os discursos do saber.” (Foucault, trad. port., 2004: 214).

[6] E se o conhecimento é poder (logo há uma relação indissociável entre poder e saber) a vigilância, a disciplina imposta, serve para categorizar, constringir e homogeneizar o indivíduo.

[7] A este respeito, Boaventura Sousa Santos, entende que nos dias de hoje na sociedade não se poderá falar somente de poder disciplinar ao lado de poder jurídico, mas também temos de ter em atenção a coexistência de outros poderes, “o Patriarcado”, “a exploração”, “o feitichismo das mercadorias”, “a diferenciação desigual” “a dominação” e a “troca desigual”, resultando que o poder disciplinar decrescerá de importância. (Santos, 2002: 447)

 


Trabalho de estudante elaborado por Fernando Vitório Frazão no âmbito da disciplina Direito e Sociedade do Mestrado 'Novas Fronteiras do Direito', no ano académico 2004-2005.

 

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