Apontamentos
sobre o livro
Os
Tribunais nas Sociedades Contemporâneas
-
O Caso Português de
Boaventura de Sousa Santos, Maria
Manuel Leitão Marques
, João
Pedroso
, Pedro
Lopes Ferreira, Coimbra
/ Lisboa / Porto, Centro de Estudos Sociais
/ Centro
de Estudos Judiciários
/ Edições
Afrontamento
,
1996
por
João Basílio
Índice
A
– Elementos introdutórios
B
– Reconstituição dos contextos
C – Reconstituição
da “démarche”
D – Conclusões Finais
A
– Elementos introdutórios
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1.
Motivos de escolha do texto
Como
prático do direito e lidando, no dia a dia, com os nossos Tribunais,
desde sempre me interessei pelo estudo dos Tribunais nas sociedades
contemporâneas.
E
naturalmente o caso português interessa-me de sobremaneira.
Assim
aconteceu quando a obra foi editada em 1996. Li a obra e segui atentamente
o debate que na altura se verificou, entre os vários profissionais do
Direito – juizes, advogados, cientistas sociais, entre outros –.
Importa
realçar que é uma obra colectiva, onde o contributo do Professor Doutor
Boaventura de Sousa Santos aparece como co-autor, não assumindo a
coordenação, e ficando muito difícil destrinçar o que é próprio, do
que é comum aos autores.
2.
Contextualização do texto – situação do texto na obra do
autor
São
os próprios autores que no seu prefácio contextualizam a obra:
“Em
1990, o Centro de Estudos Judiciários, na altura dirigido pelo Dr.
Laborinho Lúcio, encomendou ao Centro de Estudos Sociais, no seguimento
de um concurso público limitado, uma investigação sociológica sobre o
funcionamento dos Tribunais e sobre as percepções e avaliações dos
portugueses a seu respeito”. (13-Prefácio)
e
mais...
“O contrato de
investigação foi, aprovado pelo despacho n.º 21/90 do Senhor Ministro
da Justiça, Dr. Laborinho Lúcio, entretanto nomeado para esta pasta
governamental e publicado no DR 2ª série n.º72 de 27 de Março de
1990”. ( 13- Prefácio)
De
referir que, para além do Centro de Estudos Judiciários e do Centro de
Estudos Sociais, também o Gabinete de Estudos e Planeamento do Ministério
da Justiça subscreveu o contrato.
O
projecto foi executado em 3 anos.
B
– Reconstituição dos contextos,
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tal como detectáveis no texto analisado:
1. Autores
citados / Universo Teórico
Obras
referenciadas na bibliografia -
234
Autores
com mais obras referenciadas na bibliografia:
Santos,
Boaventura Sousa – 5
Toharia, José Juan – 5
Marques, M. Manuel Leitão – 3
Macaulay, S. – 4
Kritzer, Herber M. – 4
Galantes Marc – 7
Dias, Jorge Figueiredo – 5
Cappelletti, Mauro – 4
Blankenburg, Erhard – 4
Interessante e não menos
significativo:
o Capítulo 2 é baseado na análise económica de direito.
A
fls. 57 da obra refere-se na anotação 2:
“cf.
em especial, Posner 1977. Sobre a análise económica do direito cf. também
Franco, 1992, 63 ss, Martins, 199_, 29 ss e Macintosh 1990”.
Acontece que, na
bibliografia, Posner não
consta.
2. Referências
ao contexto académico
Na
expressão de um eminente sociólogo, a sociologia tem por vocação
original «ir para além das fachadas», investigar para além das evidências
do senso comum, das «verdades» feitas, acriticamente repetidas, sem
prevenção nem escrutínio. Daqui resulta que, sempre que fiel à sua
vocação, a sociologia tende a produzir conhecimento critico e polémico;
tanto mais crítico quanto mais está instalada a preguiça cognitiva ou a
subserviência a discursos de autoridade e tanto mais polémico quanto
menos enraizada a cultura democrática e consequentemente o gosto e a
responsabilidade que ela cria pelo debate de ideias, aberto e veemente, no
espaço público a que idealmente todos devem ter acesso” (14 )
(sublinhado nosso).
3. Referências
ao contexto histórico-social
“Os
nossos tribunais são uma das instituições mais intrigantes do Estado
moderno. Sendo desde sempre um dos órgãos de soberania, remeteram-se
durante muito tempo a uma apagada obscuridade donde só emergiram
excepcionalmente e quase sempre em períodos de crise dos regimes políticos.
Hoje, um pouco por toda a parte, os tribunais têm vindo a assumir uma
visibilidade social e um protagonismo político algo inéditos o que,
naturalmente, suscita a atenção dos cidadãos e dos políticos e
desperta o interesse analítico dos cientistas sociais. Em muitos países
europeus e na América do Norte, este interesse vem desde finais da década
de sessenta e tem-se traduzido numa bibliografia científica já hoje
vasta sobre os mais diversos aspectos da actuação dos tribunais.
O nosso país tem estado à margem deste movimento científico e
este atraso confere aos nossos tribunais uma opacidade funcional e
institucional que já não tem paralelo na Europa e na América do
Norte.” ( 13 – Prefácio)
C – Reconstituição
da “démarche”
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1.
Estrutura do texto
Esta
obra foi apresentada como “um primeiro passo na investigação sistemática
sobre os Tribunais portugueses”. ( 13)
Está
dividida em 4 partes:
1º
Índole Teórica-metodológica
Capítulo 1- quadro teórico geral
Capitulo 2 – dimensão microeconómica da procura e da oferta judicial.
Capítulo 3 – hipóteses de trabalho e metodologia
2º
Apresentação dos resultados do sub-projecto 1
Capítulo 4 a 10 – Desempenho judicial de primeira instância em matéria
civil e penal
3º
Apresentação e análise do inquérito sobre as experiências de litígios
dos portugueses e nas representações sociais sobre os Tribunais, o
direito e a litigiosidade (sub-projecto 2)
Capítulo 11
4º
Conclusões principais da investigação
2. Principais
interrogações
“Relação
entre o desempenho efectivo dos Tribunais e o que os cidadãos pensam
dele” (86).
“...
desenhámos este estudo de molde a estabelecer uma ampla interface analítica
entre o trabalho efectivo dos Tribunais e as percepções e avaliações
dos cidadãos a respeito dele”. (86).
3. Procedimentos
“
Daí, a realização conjunta, no âmbito do mesmo projecto de investigação,
de dois sub-projectos, usando em cada um as metodologias adequadas, mas
ambos organizados a partir do mesmo quadro conceptual e analítico” (
86).
O
primeiro sub-projecto pretende responder às questões “quem usa os
tribunais portugueses, para quê e com que resultados”( 86).
O
segundo sub-projecto “incide
sobre as percepções e avaliações dos cidadãos sobre o sistema
judicial, as suas experiências concretas em tribunal, as suas experiências
de situações litigiosas e das instâncias a que recorreram para as
resolver, a partir de um inquérito de âmbito nacional”( 87)
Colocadas
as hipóteses de trabalho, recorreram “tanto a
métodos quantitativos como qualitativos, ainda que os primeiros
tenham predominado” (90)
4.
Inventário dos principais conceitos
Conceitos
básicos:
“Desempenho” e “Representação Social”
( objecto central duplo )
O
desempenho nos seus
parâmetros,
características
e variações.
Teve
como pressuposto que o nível de desenvolvimento económico e social
condiciona a natureza da conflitualidade social e interindividual, a
propensão a litigar e o tipo de litigação.
Logo,
o desempenho dos tribunais é a expressão do padrão de consumo da justiça,
entendido este como oferta efectiva de tutela judicial perante a procura
efectiva.
A
representação social como representações e avaliações sociais desse
desempenho, ou seja o que os cidadãos pensam dele.
Nas
palavras dos autores “procurando tirar algum proveito do nosso atraso,
desenhámos este estudo de molde a estabelecer uma ampla interface analítica
entre o trabalho efectivo dos tribunais e as percepções e avaliações
dos cidadãos a respeito dele... a partir do mesmo quadro conceptual e
analítico”. ( 86)
Outro
conceito que desenvolvem:
“A
Cultura Jurídica é o conjunto de orientações a valores e a interesses
que configuram um padrão de atitudes face ao direito e aos direitos e
face à instituições do Estado que produzem, aplicam, garantem ou violam
o direito e os direitos”. (42).
Daí
os autores partem para o estudo do nível de litigiosidade na sociedade,
tendo presente que “a esmagadora dos litígios continuava a ser
resolvida fora dos tribunais” (43), onde as diferenças nacionais
perante a litigação são evidentes, e concluem que “na análise das
variações dos níveis de litigiosidade é necessário distinguir entre
as ondas longas de litigação e as variações bruscas e de curta duração,
uma vez que só as primeiras são reconduzíveis à evolução do padrão
de desenvolvimento ou à cultura jurídica dominante.” ( 43)
Concluem:
“O
conceito de cultura jurídica é útil desde que limitado nas suas ambições
analíticas e explicativas pois muitos outros factores interferem na evolução
dos tipos e níveis de litigação”.
( 44).
Por
outro lado:
Conceito
de Litígio
“Os
litígios são construções sociais, na medida em que o mesmo padrão de
comportamento pode ser considerado litigioso ou não litigioso consoante a
sociedade, o grupo social ou o contexto de interacções em que ocorre.
Como todas as demais construções sociais, os litígios são relações
sociais que emergem e se transformam segundo dinâmicas sociologicamente
identificáveis. A transformação delas em litígios judiciais é apenas
uma alternativa entre outras e não é, de modo nenhum, a mais provável,
ainda que essa possibilidade varie de país para país, segundo o grupo
social e a área de interacção”. ( 44-45).
Partem
deste conceito de litígio para o:
Conceito
de pirâmide de litigiosidade
“recurso
a uma metáfora geométrica, do modo como são geridos socialmente as relações
litigiosas numa dada sociedade. Sabendo-se que as que chegam aos Tribunais
e, destas, as que chegam a julgamento, são a ponta da pirâmide, há que
conhecer a Trama social que intercede entre a ponta e a base da pirâmide”.
( 44).
“As
sociedades são juridicamente pluralistas na medida em que o direito
oficial coexiste com outros direitos que circulam não oficialmente na
sociedade, no âmbito das relações sociais específicas, tais como relações
de família, de produção e trabalho de vizinhança, etc. Esta
normatividade é frequentemente mobilizada pelos mecanismos informais de
resolução de litígios. O normativismo é apenas implícito no caso dos
critérios profissionais, técnico-deontológicos, que tendem a ser
accionados em litígios emergentes de relações profissionais. Mas em
quase todos os mecanismos, ainda que nuns mais que noutros , há recurso a
critérios éticos dominantes que intervêm em constelações de sentido
muito complexas onde figuram também normas jurídicas e critérios técnico-profissionais”.(48)
No
capitulo 2 intitulado “Da micro-economia à micro-sociologia da Tutela
Judicial” estudam o desempenho judicial não já pela referência aos
macro-factores, mas debruçam-se sobre os micro-factores. – “os
micro-factores podem ser accionados segundo lógicas de racionalidade
diferentes, instrumentalistas ou expressivas, afectivas ou económicas, tácticas
ou estratégicas”(57)
Daí
partem para a análise económica do direito da escola americana de
Chicago, mas afirmam que “são conhecidas as limitações do modelo
micro-económico que subjaz a esta análise” ( 57).
Todavia,
consideram que “apesar destas limitações, a análise económica do
direito tem algumas virtualidades analíticas sobretudo por via da
formalização que torna possível do efeito combinado de algumas das
principais variáveis que determinam a procura individual de tutela
judicial, sobretudo em matéria cível e laboral”(58)
Entre
outros estudam:
A
função procura da tutela judicial.
A gestão da procura dos serviços judiciais.
A caracterização dos “consumidores”, ou “mobilizadores” do
sistema judicial.
A gestão das situações conflituais.
Perspectivas
de evolução na juridificação dos negócios e no recurso aos Tribunais
pelas empresas.
5.
Principais conclusões dos autores
“Quanto
menor for a capacidade da oferta tradicional de serviços judiciais para
se adaptar às novas características da procura potencial, maior será a
sua marginalização neste processo.
Os
juristas de empresa podem ser hoje mais importantes, mas a sua formação
e modo de raciocínio, como refere Pallnisseau, têm de ser diferentes. O
mesmo se aplica aos magistrados”. (84).
Importa
de uma forma resumida ver as conclusões de páginas 685 a 700
“Na
esmagadora maioria dos casos confirmaram-se as hipóteses de trabalho que
avançámos na primeira parte deste estudo, ainda que frequentemente com
matizes importantes.” ( 685)
“O
sistema judicial português tem uma grande estabilidade
estrutural-funcional” (685)
“O
desempenho dos tribunais, sendo muito estável, é também muito
selectivo”( 686).
“A
selectividade e concentração do desempenho judicial verifica-se, não só
no tipo de litígios judicializados, mas também no tipo de litigantes”(
687).
“A
nossa hipótese de trabalho de que o padrão de litigação judicial é um
padrão «clássico» de recorte liberal confirma-se ainda que com duas
ressalvas importantes” (687).
“O
perfil liberal de desempenho judicial em Portugal resulta também do tipo
de garantismo que o caracteriza”( 688).
“Dada
a selectividade e concentração da actividade judicial, a eficiência dos
tribunais não pode ser aferida em geral”( 689).
“A
uma eficiência muito elevada mas muito selectiva corresponde normalmente
uma ineficiência igualmente muito elevada nas áreas menos
eficientes”(690)
“O
outro indicador de eficiência é a morosidade”( 690).
“A
selectividade do desempenho judicial repercute-se nas assimetrias da sua
distribuição regional”(691).
“Quanto
à identidade e perfil social dos mobilizadores dos tribunais, entre os
mobilizadores institucionais ( se descontarmos a mobilização pelo próprio
Estado através do MP) dominam em absoluto as sociedades comerciais e,
dentre estas, os bancos, as companhias de seguros e as empresas de crédito
ao consumo”(692).
“A
especificidade funcional dos nossos tribunais e os elevados desequilíbrios
nos graus de funcionalidade tornaram particularmente importante a análise
da litigiosidade não judicializada”(692).
“O
perfil das pirâmides de litigiosidade e os factores sociais e culturais
que o sustentam podem ajudar a explicar que, nas condições de
especificidade funcional em que opera, o sistema judicial português tem
controlado bem a procura efectiva, respondendo mais ou menos adequadamente
ao aumento desta, como se pode ver entre processos entrados e processos
findos que, com alguns desfasamentos, se tem mantido a um nível razoável.”(696).
“Confirmou-se
plenamente a nossa hipótese de trabalho de que há uma discrepância
entre funções instrumentais, por um lado, e as funções políticas e
simbólicas, por outro”( 697)
“A
análise precedente permite-nos igualmente concluir pela enorme
complexidade do tema da independência judicial no nosso país” (
698).
D – Conclusões Finais
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Importa
agora concluir:
Esta
obra cumpriu a sua missão.
A
abordagem dos autores insere-se na temática do «direito em sociedade» -
o direito, como universo de práticas que envolvem directamente um
conjunto limitado de pessoas, é percepcionado também por pessoas que não
são directamente envolvidas nestas práticas,
Os
autores seguem a via clássica dos trabalhos científicos, pois começam
por definir o quadro teórico em que inserem a sua pesquisa, daí passando
para a reflexão crítica da teoria, e prosseguindo depois com a
operacionalização dos conceitos na pesquisa, definição e reflexão
sobre as metodologias e instrumentos utilizados, exposição sobre os
dados empíricos, qualitativos e quantitativos recolhidos e, por último,
para a conclusão.
Porém,
esta obra parecia ter entrado um pouco no esquecimento. Sabemos agora que
não... O Professor Doutor Boaventura de Sousa Santos teve oportunidade de
nos revelar, numa conferência proferida no dia 10 de Maio 2005, no ISCTE,
no âmbito do Mestrado “Novas Fronteiras do Direito” que, volvidos 10
anos sobre este estudo, se prepara novo trabalho com base na mesma
metodologia, comparando-o com o existente.
Na
perspectiva do Mestrado “Novas Fronteiras do Direito” entendemos este
trabalho como elaboração de uma ficha de leitura que deve ser aqui
entendida como estruturada, isto é, a sua finalidade é apresentar a
explicitação de um ou mais textos com vista à sua avaliação. De
facto, não se trata de ficha tipo resumo apenas para servir de suporte a
uma futura redacção: ela é já entendida como essa redacção.
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