Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa - ISCTE
Secção Autónoma de Direito
Mestrado "Novas Fronteiras do Direito"
Actualizado em Junho de 2005

Novas Fronteiras do Direito
no "site" do ISCTE

 

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Apontamentos sobre o texto de Pierre Bourdieu, “Génese e Estrutura do Campo Burocrático” (1993)

por Wilson Gomes Cecílio
Texto elaborado a partir de uma exposição feita no âmbito da disciplina 
Direito e Sociedade

 

1 - INTRODUÇÃO

O texto é uma transcrição de uma conferência proferida em Amsterdão, em Junho, de 1991, no Encontro Mundial de Sociologia do Direito.

Encontra-se inserido num livro, que conta uma série de textos apresentados em diversas conferências, onde explícita, como nunca antes o tinha feito, os princípios filosóficos que estão na base dos seus trabalhos, bem como a concepção do homem que orienta as suas escolhas, enquanto investigador em Ciências Sociais.

Pierre Bourdieu apresenta com este texto, um olhar sobre o Estado; sobre a sua origem, a sua essência.

2. BREVE RESUMO DO TEXTO ANALISADO  

2.1 – CONCENTRAÇÃO DE FORÇA FÍSICA

O texto inicia-se praticamente com uma citação de Thomas Bernard, referindo o Estado como manipulador e destrutivo. Quem entra para a escola, entra para o Estado e serve para sempre o Estado.

Pierre Bourdieu concorda com este quando diz, que para pensar o Estado, que continua a pensar-se através daqueles que ainda o continuam a pensar (por exemplo Hegel ou Durkeim) dever-se-á pôr em causa todos os pressupostos e pré-construções do próprio Estado, assim como pôr em causa o pensamento dos analistas do Estado.

Para Bourdieu, o Estado impõe as mudanças que quer, por mais impensáveis que sejam, como o exemplo referido no texto, “à primeira vista insignificante que é a ortografia”, em que os defensores da naturalidade da ortografia existente esquecem-se que a ortografia existente é fruto de anterior intervenção do Estado, isto é, uma reforma da ortografia é “desfazer por decreto o que o Estado por decreto fizera”.

É o Estado que, na produção simbólica, produz os problemas sociais, que a ciência social ratifica, tomando-os como seus.

Bourdieu critica a Escola de Cambridge, porque esta utiliza para pensar o Estado, análises de juristas do século XVI e XVII que na fase de construção e consolidação da ideia de Estado ajudaram produzir o seu universo burocrático, sendo esses escritos não contribuições intemporais e isentas, mas sim contribuições influenciadas pelas normas e Estado vigente, e igualmente influenciadas pelos interesses e valores daqueles que o fizeram.

A ciência social faz parte da realidade do Estado e do esforço da construção da representação do Estado, desde a origem deste.

Seguidamente Bourdieu refere a concentração de capitais – capital de força física, capital económico, capital cultural e capital simbólico que o Estado detém.

Cita Max Weber, dizendo que “o Estado é uma comunidade humana que reivindica com sucesso o monopólio do uso legítimo da violência física num determinado território”. Bourdieu concorda que o Estado monopoliza a violência física, acrescentando o monopólio da violência simbólica. Esta violência simbólica existe porque, o Estado concentra em simultâneo a objectividade – as estruturas e mecanismos específicos para tal e a subjectividade –, ou seja, as estruturas mentais, o pensamento, incutido ao longo dos tempos apresentando-se sobre uma aparência de naturalidade.

Bourdieu propõe que haja uma ruptura de ideias e por isso propõe uma reconstrução da génese através de um modelo quase irrealizável – nas suas palavras – que é o modelo de emergência do Estado.

Este modelo é quase irrealizável, porque é necessário saber todos os pormenores do Estado e organizá-los de forma coerente, como também é necessário a informação ser relevante.

Para o autor, o Estado é detentor de uma espécie de metacapital, isto é, através da concentração dos capitais existentes, tem o poder sobre estes e os seus detentores, e cria uma luta entre os diferentes capitais e seus detentores para atingir o poder sobre o Estado e deste modo ter o poder sobre todas as espécies de capitais.

Pierre Bourdieu considera que todas as espécies de capitais existentes são interdependentes, contudo examina-os um a um.

2.1.1. – CONCENTRAÇÃO DE FORÇA FÍSICA

Inicia com o capital de força física, referindo o Estado como aparelho de coacção. Deste fazem parte o exército e a polícia. Apenas este capital está autorizado a exercer a violência física de forma a proteger a sociedade de “ameaças” vindas do exterior e do interior do Estado. A concentração desta forma de capital leva a um afastamento do mundo social.

Esta concentração de força física foi historicamente uma ameaça à nobreza, no seu monopólio da função guerreira, tal como Norbert Elias evidenciou das implicações da análise de Weber, relativa à problemática do poder.

2.1.2 - CONCENTRAÇÃO DE CAPITAL ECONÓMICO

Associada a esta concentração surge a ideia de fiscalidade eficiente – imposto cobrado pelo Estado, a todos os seus súbditos de forma coerciva, para sustentar as despesas de guerra, isto no século XII.

Com a institucionalização do imposto, os súbditos viam-se cada vez mais pressionados a “contribuir”, pois eram ameaçados pelo Rei – “corpo fictício do estado” – com diversas sanções para o fazer.

A legitimidade do imposto é colocada em causa pela fraude fiscal, que ainda hoje se manifesta.

O aumento do reconhecimento da legitimidade das tributações, levou a uma forma de nacionalismo e unificação do território, isto porque, passaram a encarar o imposto não como motivado pelo interesse do príncipe, mas pelo interesse do país – a defesa do território. Inicia-se aqui a ideia de estado nacional, através deste meio de soberania.

A concentração de capital económico ligado à instauração de fiscalidade interna levou a um controlo das contas públicas, havendo uma concentração da informação, tratando-a e redistribuindo-a – criação do embrião do orçamento – operando assim uma unificação teórica. Esta concentração de capital económico acompanha a concentração de capital informacional, em que a sociedade no seu conjunto é responsável pelas operações ou totalização através de recenseamento, estatística, etc.

2.1.3 - CONCENTRAÇÃO DE CAPITAL CULTURAL

O capital cultural é uma dimensão do capital informacional, pois através da cultura, o Estado unifica todos os códigos e formas de comunicação, influenciando assim a identidade nacional, moldando as estruturas mentais, nomeadamente através do sistema de ensino – surge a ideia de educabilidade universal – todos iguais perante a lei, o Estado tem o dever de os tornar cidadãos dotados de meios culturais, que lhes permita exercer activamente os seus direitos cívicos.

Esta unificação cultural e linguística é acompanhada pela imposição de língua e cultura dominantes, que não é acompanhada pela universalização do acesso o que significa, que alguns têm acesso à mudança, favorecendo a monopolização do universal por alguns, e outros não têm essa sorte, sendo assim desapossados do universal mutilados na sua humanidade.


2.2 - O CAPITAL SIMBÓLICO

A sua concentração pode surgir em qualquer forma anterior de capital e caracteriza-se por não ser algo palpável, mas reconhecido. O autor dá o exemplo da honra, que existe através da reputação.

Entende Bourdieu, que a concentração de capital simbólico de autoridade reconhecida, ignorado por todas as outras espécies de teorias de génese do Estado, é condição ou, pelo menos, aspecto concomitante de todas as outras formas de concentração. O Estado detentor de capital simbólico, educa os cidadãos, impondo-lhe os seus próprios princípios e ideais e deste modo influenciando-os.

O processo de concentração de capital jurídico é uma forma objectivada e codificada do capital simbólico, que segue a sua lógica própria.

Dando exemplos, Bourdieu começa por referir, que no século XII e XIII existiam várias jurisdições: a do clero, do rei, dos senhores, dos cidadãos, referindo que a justiça real, “insinua-se” pouco a pouco na sociedade inteira, concentrando-se e formando assim um aparelho jurídico concentrado nos juristas e no Rei, apesar de estes não terem estabelecido qualquer concentração para esse fim.

Este movimento de concentração é acompanhado pelo desenvolvimento de uma teoria de apelação, desenvolvida pelos juristas, que revela as regras de instância – apela-se sempre a um senhor de grau superior, sem que seja possível saltar instâncias intermédias –, ou seja, não se pode apelar directamente para o Rei.

Igualmente verifica-se uma organização e hierarquização do corpo judicial. Estas mudanças e a concentração de capital jurídico encerram-se com as ordenações de 1670 em que, e nas palavras de Bourdieu “ a competência delegada sobre certa instância toma o lugar de supremacia ou de autoridade directamente exercida sobre as pessoas.”

Usando o exemplo francês, Bourdieu afirma que as estruturas jurídico-administrativas, constitutivas do Estado, avançam simultaneamente com a construção do corpo dos juristas, que controlavam a sua própria reprodução e o Estado.

A concentração de capital simbólico, que é o fundamento da autoridade específica do detentor do poder estatal é um processo mais amplo do qual a concentração do capital jurídico é um dos aspectos centrais.

Bourdieu dá o exemplo desta concentração de capital, com a instância central de nomeação, sob a forma de cargos e de honras concedidas e concebidas como recompensas. Assim sendo, e citando Bourdieu “ passa-se de um capital simbólico, difuso, fundado apenas no reconhecimento colectivo, a um capital simbólico objectivado, codificado, delegado e garantido pelo Estado, burocrático”.

Mais uma vez Bourdieu dá exemplos concretos, referindo as leis sumptuárias que regulavam de forma hierarquizada a distribuição das manifestações simbólicas, como o vestuário e adereços, que defendiam a nobreza e reforçavam e alargava o seu controlo sobre as mesmas.

Bourdieu compara a magia de um feiticeiro que concentra todo o capital de crença acumulado pelo Universo mágico, com o Presidente da República que assina uma nomeação ou um médico que assina um atestado, que mobilizam todo o capital simbólico acumulado por uma rede de relações constitutivas do universo burocrático.

Questiona ainda quem valida o atestado do médico. Responde que é o próprio médico. Mas a grande questão é quem certifica quem assinou o atestado.

Bourdieu conclui, que o Presidente da República é alguém que se tomou pelo Presidente da República, mas que ao contrário do louco que se toma por Napoleão, este Presidente da República é reconhecido como Presidente da República.

Esta ideia do autor, salvo melhor opinião, poderá estar relacionado com a necessidade de um poder supremo, na figura do Estado, citando o autor quando este cita Hegel “ o juízo do Estado é o juízo final”.

2.3 - A CONSTRUÇÃO ESTATAL DOS ESPÍRITOS

Um dos aspectos específicos do poder do Estado assume a forma particular de eficiência simbólica, que consiste em entender que as relações de força, tanto são relações simbólicas, como actos de submissão.

O Estado nas sociedades organizadas contribui para a produção dos instrumentos de construção de realidade social, impondo e incutindo princípios. Citando Bourdieu, “os agentes sociais constroem o mundo social através das estruturas cognitivas susceptíveis de serem aplicadas a todas as coisas do mundo e, em particular, às estruturas sociais.”

Assim, o Estado cria condições para que a espécie de habitus, que como sabemos é o que os agentes adquiriram e que se incorporam de modo duradouro sob a forma de disposições permanente, que como refere no texto é “o fundamento de uma espécie de consenso sobre um conjunto de evidências partilhadas constitutivas do senso comum.”

Através do exemplo fornecidos pelo autor – a estrutura das férias escolares – conseguimos entender a submissão imediata que a ordem estatal obtém, advém do facto dos agentes considerarem inconscientemente como normas, os princípios incutidos pelo Estado.

Esta ordem simbólica assenta na imposição ao conjunto de agentes das estruturas cognitivas que são em parte, pelo menos na sua aparência coerentes e sistemáticas.

Utilizando Hume, Bourdieu revela a questão fundamental da filosofia politica – a questão da legitimidade. Esta questão deriva do facto de o Estado não ter que ser coercivo para produzir um mundo social ordenado, pois ao incutir princípios na estrutura cognitiva consegue e citando Bourdieu “ a submissão dóxica à ordem estabelecida”. Assim o doxa é o ponto de vista dos dominantes e que se impõe como universal.

A única forma de entendermos o Estado enquanto efeito universal é através da compreensão e análise da génese e estrutura dos agentes do Estado, nomeadamente os juristas que produziam o discurso sobre o Estado, dizendo assim ao Estado o que era o Estado. Ao fazê-lo os juristas colocaram-se em “nobreza de Estado”, tendo a competência jurídica, “capital cultural predisposto a funcionar como capital simbólico”, dando forma universal aos seus interesses particulares, fazendo uma teoria de serviço público.

Foi por causa do capital especifico e interesses particulares dos juristas que se criou o discurso de Estado, oferecendo justificações para a posição que ocupavam dentro do Estado, deixando de ser uma simples ficção dos juristas para se tornar numa ordem autónoma, que impõe os seus princípios de funcionamento.
 

2.4 - MONOPOLIZAÇÃO DOS MONOPÓLIOS

Para Bourdieu, o monopólio estatal de força física e simbólica é inseparável das lutas pelo monopólio dos benefícios ligados a esses monopólios. Bourdieu critica Weber e Elias, pois estes esqueceram-se da constituição de um capital social e do processo de monopolização desses capitais por quem produziu o Estado, ou seja, os juristas.

Contudo, este monopólio do universal, só se obtém com a submissão aparente ao universal.

Bourdieu critica Marx, porque este dá a ideia de que os burocratas são usurpadores do universal, quando na realidade são estes os seus criadores.

Segundo Bourdieu a monopolização do universal é o resultado de um trabalho de universalização que se cumpre no interior do próprio campo burocrático. O que é universal é legítimo, o que leva a que todos os universos sociais ofereçam ganhos materiais ou simbólico de universalização.

O Bourdieu acaba por concluir que a Sociologia deve ter a seguinte noção: o que o Estado tem tido como certo e que institui como norma, nem sempre é seguido. No entanto, também as normas estipuladas podem não ter o efeito esperado.
 

3 - CONCLUSÃO

Da leitura do texto parece-me que o poder simbólico manifesta-se como sendo o poder que consegue impor significações impondo-as como legítimas. Os símbolos afirmam-se assim, como instrumentos por excelência de integração social, tornando viável a reprodução da ordem estabelecida. O campo apresenta-se como uma configuração de relações socialmente distribuídas. Com a distribuição das diversas formas de capital (no caso da cultura, o capital simbólico) os agentes participantes em cada campo são dotados com as capacidades adequadas ao desempenho das funções e à prática das lutas que o atravessam. No interior de cada campo, as relações existentes definem-se objectivamente independentemente da consciência humana.

Os indivíduos, na estrutura objectiva do campo, (hierarquia de posições, tradições, instituição e história) adquirem um corpo de disposições. Estas permitem-lhes agir de acordo com as possibilidades existentes no interior dessa estrutura objectiva: o habitus. Deste modo, o habitus funciona como uma força conservadora no interior da ordem social.

As referências sobretudo a Marx, Durkheim e Weber, assim como, a Levi-Strauss e Marcel Mauss, mas afastando-se destes, vêm no caminho que Bourdieu traçou para desenvolver uma sociologia crítica, colocando no centro a dialéctica do poder material e da dominação simbólica. (...)

O Estado existe e habituamo-nos a conhecê-lo, a saber como funciona, as suas regras democráticas ou não, mas verdadeiramente, e por mim falo, nunca colocamos a questão de saber qual o fundamento da existência do Estado.

 

4 – BIBLIOGRAFIA

BOURDIEU, Pierre, (2001), "Espíritos de Estado – Génese e Estrutura do Campo Burocrático", em Razões Práticas. Sobre a Teoria da Acção, Oeiras, Celta Editora, 2.ª Edição (publicação original do texto: 1993).

 

Trabalho de estudante elaborado por Wilson Gomes Cecílio no âmbito da disciplina Direito e Sociedade do Mestrado 'Novas Fronteiras do Direito', no ano académico 2004-2005.

 

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