Apontamentos
sobre o texto de Pierre Bourdieu, “Génese e Estrutura do Campo Burocrático”
(1993)
por
Wilson Gomes Cecílio
Texto
elaborado a partir de uma exposição feita no âmbito da disciplina
Direito e Sociedade
1
- INTRODUÇÃO
O
texto é uma transcrição de uma conferência proferida em Amsterdão, em
Junho, de 1991, no Encontro Mundial de Sociologia do Direito.
Encontra-se
inserido num livro, que conta uma série de textos apresentados em
diversas conferências, onde explícita, como nunca antes o tinha feito,
os princípios filosóficos que estão na base dos seus trabalhos, bem
como a concepção do homem que orienta as suas escolhas, enquanto
investigador em Ciências Sociais.
Pierre
Bourdieu apresenta com este texto, um olhar sobre o Estado; sobre a sua
origem, a sua essência.
2.
BREVE RESUMO DO TEXTO ANALISADO
2.1
– CONCENTRAÇÃO DE FORÇA FÍSICA
O
texto inicia-se praticamente com uma citação de Thomas Bernard,
referindo o Estado como manipulador e destrutivo. Quem entra para a
escola, entra para o Estado e serve para sempre o Estado.
Pierre
Bourdieu concorda com este quando diz, que para pensar o Estado, que
continua a pensar-se através daqueles que ainda o continuam a pensar (por
exemplo Hegel ou Durkeim) dever-se-á pôr em causa todos os pressupostos
e pré-construções do próprio Estado, assim como pôr em causa o
pensamento dos analistas do Estado.
Para
Bourdieu, o Estado impõe as mudanças que quer, por mais impensáveis que
sejam, como o exemplo referido no texto, “à primeira vista
insignificante que é a ortografia”, em que os defensores da
naturalidade da ortografia existente esquecem-se que a ortografia
existente é fruto de anterior intervenção do Estado, isto é, uma
reforma da ortografia é “desfazer por decreto o que o Estado por
decreto fizera”.
É
o Estado que, na produção simbólica, produz os problemas sociais, que a
ciência social ratifica, tomando-os como seus.
Bourdieu
critica a Escola de Cambridge, porque esta utiliza para pensar o Estado,
análises de juristas do século XVI e XVII que na fase de construção e
consolidação da ideia de Estado ajudaram produzir o seu universo burocrático,
sendo esses escritos não contribuições intemporais e isentas, mas sim
contribuições influenciadas pelas normas e Estado vigente, e igualmente
influenciadas pelos interesses e valores daqueles que o fizeram.
A
ciência social faz parte da realidade do Estado e do esforço da construção
da representação do Estado, desde a origem deste.
Seguidamente
Bourdieu refere a concentração de capitais – capital de força física,
capital económico, capital cultural e capital simbólico que o Estado detém.
Cita
Max Weber, dizendo que “o Estado é uma comunidade humana que reivindica
com sucesso o monopólio do uso legítimo da violência física num
determinado território”. Bourdieu concorda que o Estado monopoliza a
violência física, acrescentando o monopólio da violência simbólica.
Esta violência simbólica existe porque, o Estado concentra em simultâneo
a objectividade – as estruturas e mecanismos específicos para tal e a
subjectividade –, ou seja, as estruturas mentais, o pensamento, incutido
ao longo dos tempos apresentando-se sobre uma aparência de naturalidade.
Bourdieu
propõe que haja uma ruptura de ideias e por isso propõe uma reconstrução
da génese através de um modelo quase irrealizável – nas suas palavras
– que é o modelo de emergência do Estado.
Este
modelo é quase irrealizável, porque é necessário saber todos os
pormenores do Estado e organizá-los de forma coerente, como também é
necessário a informação ser relevante.
Para
o autor, o Estado é detentor de uma espécie de metacapital, isto é,
através da concentração dos capitais existentes, tem o poder sobre
estes e os seus detentores, e cria uma luta entre os diferentes capitais e
seus detentores para atingir o poder sobre o Estado e deste modo ter o
poder sobre todas as espécies de capitais.
Pierre
Bourdieu considera que todas as espécies de capitais existentes são
interdependentes, contudo examina-os um a um.
2.1.1.
– CONCENTRAÇÃO DE FORÇA FÍSICA
Inicia
com o capital de força física, referindo o Estado como aparelho de coacção.
Deste fazem parte o exército e a polícia. Apenas este capital está
autorizado a exercer a violência física de forma a proteger a sociedade
de “ameaças” vindas do exterior e do interior do Estado. A concentração
desta forma de capital leva a um afastamento do mundo social.
Esta
concentração de força física foi historicamente uma ameaça à
nobreza, no seu monopólio da função guerreira, tal como Norbert Elias
evidenciou das implicações da análise de Weber, relativa à problemática
do poder.
2.1.2
- CONCENTRAÇÃO DE CAPITAL ECONÓMICO
Associada
a esta concentração surge a ideia de fiscalidade eficiente – imposto
cobrado pelo Estado, a todos os seus súbditos de forma coerciva, para
sustentar as despesas de guerra, isto no século XII.
Com
a institucionalização do imposto, os súbditos viam-se cada vez mais
pressionados a “contribuir”, pois eram ameaçados pelo Rei –
“corpo fictício do estado” – com diversas sanções para o fazer.
A
legitimidade do imposto é colocada em causa pela fraude fiscal, que ainda
hoje se manifesta.
O
aumento do reconhecimento da legitimidade das tributações, levou a uma
forma de nacionalismo e unificação do território, isto porque, passaram
a encarar o imposto não como motivado pelo interesse do príncipe, mas
pelo interesse do país – a defesa do território. Inicia-se aqui a
ideia de estado nacional, através deste meio de soberania.
A
concentração de capital económico ligado à instauração de
fiscalidade interna levou a um controlo das contas públicas, havendo uma
concentração da informação, tratando-a e redistribuindo-a – criação
do embrião do orçamento – operando assim uma unificação teórica.
Esta concentração de capital económico acompanha a concentração de
capital informacional, em que a sociedade no seu conjunto é responsável
pelas operações ou totalização através de recenseamento, estatística,
etc.
2.1.3
- CONCENTRAÇÃO DE CAPITAL CULTURAL
O
capital cultural é uma dimensão do capital informacional, pois através
da cultura, o Estado unifica todos os códigos e formas de comunicação,
influenciando assim a identidade nacional, moldando as estruturas mentais,
nomeadamente através do sistema de ensino – surge a ideia de
educabilidade universal – todos iguais perante a lei, o Estado tem o
dever de os tornar cidadãos dotados de meios culturais, que lhes permita
exercer activamente os seus direitos cívicos.
Esta
unificação cultural e linguística é acompanhada pela imposição de língua
e cultura dominantes, que não é acompanhada pela universalização do
acesso o que significa, que alguns têm acesso à mudança, favorecendo a
monopolização do universal por alguns, e outros não têm essa sorte,
sendo assim desapossados do universal mutilados na sua humanidade.
2.2 - O CAPITAL SIMBÓLICO
A
sua concentração pode surgir em qualquer forma anterior de capital e
caracteriza-se por não ser algo palpável, mas reconhecido. O autor dá o
exemplo da honra, que existe através da reputação.
Entende
Bourdieu, que a concentração de capital simbólico de autoridade
reconhecida, ignorado por todas as outras espécies de teorias de génese
do Estado, é condição ou, pelo menos, aspecto concomitante de todas as
outras formas de concentração. O Estado detentor de capital simbólico,
educa os cidadãos, impondo-lhe os seus próprios princípios e ideais e
deste modo influenciando-os.
O
processo de concentração de capital jurídico é uma forma objectivada e
codificada do capital simbólico, que segue a sua lógica própria.
Dando
exemplos, Bourdieu começa por referir, que no século XII e XIII existiam
várias jurisdições: a do clero, do rei, dos senhores, dos cidadãos,
referindo que a justiça real, “insinua-se” pouco a pouco na sociedade
inteira, concentrando-se e formando assim um aparelho jurídico
concentrado nos juristas e no Rei, apesar de estes não terem estabelecido
qualquer concentração para esse fim.
Este
movimento de concentração é acompanhado pelo desenvolvimento de uma
teoria de apelação, desenvolvida pelos juristas, que revela as regras de
instância – apela-se sempre a um senhor de grau superior, sem que seja
possível saltar instâncias intermédias –, ou seja, não se pode
apelar directamente para o Rei.
Igualmente
verifica-se uma organização e hierarquização do corpo judicial. Estas
mudanças e a concentração de capital jurídico encerram-se com as
ordenações de 1670 em que, e nas palavras de Bourdieu “ a competência
delegada sobre certa instância toma o lugar de supremacia ou de
autoridade directamente exercida sobre as pessoas.”
Usando
o exemplo francês, Bourdieu afirma que as estruturas jurídico-administrativas,
constitutivas do Estado, avançam simultaneamente com a construção do
corpo dos juristas, que controlavam a sua própria reprodução e o
Estado.
A
concentração de capital simbólico, que é o fundamento da autoridade
específica do detentor do poder estatal é um processo mais amplo do qual
a concentração do capital jurídico é um dos aspectos centrais.
Bourdieu
dá o exemplo desta concentração de capital, com a instância central de
nomeação, sob a forma de cargos e de honras concedidas e concebidas como
recompensas. Assim sendo, e citando Bourdieu “ passa-se de um capital
simbólico, difuso, fundado apenas no reconhecimento colectivo, a um
capital simbólico objectivado, codificado, delegado e garantido pelo
Estado, burocrático”.
Mais
uma vez Bourdieu dá exemplos concretos, referindo as leis sumptuárias
que regulavam de forma hierarquizada a distribuição das manifestações
simbólicas, como o vestuário e adereços, que defendiam a nobreza e
reforçavam e alargava o seu controlo sobre as mesmas.
Bourdieu
compara a magia de um feiticeiro que concentra todo o capital de crença
acumulado pelo Universo mágico, com o Presidente da República que assina
uma nomeação ou um médico que assina um atestado, que mobilizam todo o
capital simbólico acumulado por uma rede de relações constitutivas do
universo burocrático.
Questiona
ainda quem valida o atestado do médico. Responde que é o próprio médico.
Mas a grande questão é quem certifica quem assinou o atestado.
Bourdieu
conclui, que o Presidente da República é alguém que se tomou pelo
Presidente da República, mas que ao contrário do louco que se toma por
Napoleão, este Presidente da República é reconhecido como Presidente da
República.
Esta
ideia do autor, salvo melhor opinião, poderá estar relacionado com a
necessidade de um poder supremo, na figura do Estado, citando o autor
quando este cita Hegel “ o juízo do Estado é o juízo final”.
2.3
- A CONSTRUÇÃO ESTATAL DOS ESPÍRITOS
Um
dos aspectos específicos do poder do Estado assume a forma particular de
eficiência simbólica, que consiste em entender que as relações de força,
tanto são relações simbólicas, como actos de submissão.
O
Estado nas sociedades organizadas contribui para a produção dos
instrumentos de construção de realidade social, impondo e incutindo
princípios. Citando Bourdieu, “os agentes sociais constroem o mundo
social através das estruturas cognitivas susceptíveis de serem aplicadas
a todas as coisas do mundo e, em particular, às estruturas sociais.”
Assim,
o Estado cria condições para que a espécie de habitus, que como sabemos
é o que os agentes adquiriram e que se incorporam de modo duradouro sob a
forma de disposições permanente, que como refere no texto é “o
fundamento de uma espécie de consenso sobre um conjunto de evidências
partilhadas constitutivas do senso comum.”
Através
do exemplo fornecidos pelo autor – a estrutura das férias escolares –
conseguimos entender a submissão imediata que a ordem estatal obtém, advém
do facto dos agentes considerarem inconscientemente como normas, os princípios
incutidos pelo Estado.
Esta
ordem simbólica assenta na imposição ao conjunto de agentes das
estruturas cognitivas que são em parte, pelo menos na sua aparência
coerentes e sistemáticas.
Utilizando
Hume, Bourdieu revela a questão fundamental da filosofia politica – a
questão da legitimidade. Esta questão deriva do facto de o Estado não
ter que ser coercivo para produzir um mundo social ordenado, pois ao
incutir princípios na estrutura cognitiva consegue e citando Bourdieu “
a submissão dóxica à ordem estabelecida”. Assim o doxa é o ponto de
vista dos dominantes e que se impõe como universal.
A
única forma de entendermos o Estado enquanto efeito universal é através
da compreensão e análise da génese e estrutura dos agentes do Estado,
nomeadamente os juristas que produziam o discurso sobre o Estado, dizendo
assim ao Estado o que era o Estado. Ao fazê-lo os juristas colocaram-se
em “nobreza de Estado”, tendo a competência jurídica, “capital
cultural predisposto a funcionar como capital simbólico”, dando forma
universal aos seus interesses particulares, fazendo uma teoria de serviço
público.
Foi
por causa do capital especifico e interesses particulares dos juristas que
se criou o discurso de Estado, oferecendo justificações para a posição
que ocupavam dentro do Estado, deixando de ser uma simples ficção dos
juristas para se tornar numa ordem autónoma, que impõe os seus princípios
de funcionamento.
2.4
- MONOPOLIZAÇÃO DOS MONOPÓLIOS
Para
Bourdieu, o monopólio estatal de força física e simbólica é inseparável
das lutas pelo monopólio dos benefícios ligados a esses monopólios.
Bourdieu critica Weber e Elias, pois estes esqueceram-se da constituição
de um capital social e do processo de monopolização desses capitais por
quem produziu o Estado, ou seja, os juristas.
Contudo,
este monopólio do universal, só se obtém com a submissão aparente ao
universal.
Bourdieu
critica Marx, porque este dá a ideia de que os burocratas são
usurpadores do universal, quando na realidade são estes os seus
criadores.
Segundo
Bourdieu a monopolização do universal é o resultado de um trabalho de
universalização que se cumpre no interior do próprio campo burocrático.
O que é universal é legítimo, o que leva a que todos os universos
sociais ofereçam ganhos materiais ou simbólico de universalização.
O
Bourdieu acaba por concluir que a Sociologia deve ter a seguinte noção:
o que o Estado tem tido como certo e que institui como norma, nem sempre
é seguido. No entanto, também as normas estipuladas podem não ter o
efeito esperado.
3
- CONCLUSÃO
Da
leitura do texto parece-me que o poder simbólico manifesta-se como sendo
o poder que consegue impor significações impondo-as como legítimas. Os
símbolos afirmam-se assim, como instrumentos por excelência de integração
social, tornando viável a reprodução da ordem estabelecida. O campo
apresenta-se como uma configuração de relações socialmente distribuídas.
Com a distribuição das diversas formas de capital (no caso da cultura, o
capital simbólico) os agentes participantes em cada campo são dotados
com as capacidades adequadas ao desempenho das funções e à prática das
lutas que o atravessam. No interior de cada campo, as relações
existentes definem-se objectivamente independentemente da consciência
humana.
Os
indivíduos, na estrutura objectiva do campo, (hierarquia de posições,
tradições, instituição e história) adquirem um corpo de disposições.
Estas permitem-lhes agir de acordo com as possibilidades existentes no
interior dessa estrutura objectiva: o habitus. Deste modo, o habitus
funciona como uma força conservadora no interior da ordem social.
As
referências sobretudo a Marx, Durkheim e Weber, assim como, a
Levi-Strauss e Marcel Mauss, mas afastando-se destes, vêm no caminho que
Bourdieu traçou para desenvolver uma sociologia crítica, colocando no
centro a dialéctica do poder material e da dominação simbólica.
(...)
O
Estado existe e habituamo-nos a conhecê-lo, a saber como funciona, as
suas regras democráticas ou não, mas verdadeiramente, e por mim falo,
nunca colocamos a questão de saber qual o fundamento da existência do
Estado.
4
– BIBLIOGRAFIA
BOURDIEU,
Pierre, (2001), "Espíritos de Estado – Génese e Estrutura do
Campo Burocrático", em Razões Práticas. Sobre a Teoria da Acção,
Oeiras, Celta Editora, 2.ª Edição (publicação original do texto:
1993).
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